Gilvan Samico
Gilvan Samico (1928-2013) nasceu no Recife e morou a maior parte da vida em Olinda. Foi o que lhe bastou para inventar uma obra sem território fixo ou único, nutrida tanto do que estava próximo quanto do que se imaginava distante: tanto do romanceiro popular do nordeste do Brasil quanto dos muitos mitos e lendas urdidos em outros vários cantos. Encantava-se com narrativas escritas e as refazia, a seu jeito, em imagens que antes não existiam. Devorava estrelas e foi tecendo, com elas, uma constelação inteira somente sua. Esta exposição apresenta uma parte importante desse céu iluminado que o artista legou ao mundo. Excetuando-se os trabalhos realizados durante seu período formativo, na década de 1950, a mostra inclui a quase totalidade de sua produção em xilogravura, além de uma única pintura.
A ideia de criação está presente em diversos trabalhos de Gilvan Samico. Criação da vida, criação do mundo. Ideia que remete ao poder de invenção das mulheres e dos homens, mais que à submissão a uma força que lhes seja estranha. A religiosidade, na obra do artista, é sempre coisa humana. Ideia que remete, sobretudo, à capacidade que a arte tem de imaginar o que de outro modo não existiria. As gentes, os animais e os seres impossíveis que habitam seus trabalhos são expressão de uma vontade incessante de alargar o lugar onde se vive, fazendo caber nele um repertório de inventos que o torna mais complexo e pleno, embora nunca pronto.
Uma das características da obra de Gilvan Samico é o rigor formal com que organiza, no espaço gravado, as cenas que cria. Em cada xilogravura feita, os temas seduzem tanto quanto as maneiras precisas que o artista engendra para apresentá-los. São trabalhos que, a um contato ligeiro, parecem mesmo apaziguar a experiência do olhar, posto que nada parece neles ainda caber ou faltar. Vistos em conjunto e com mais vagar, revelam também, todavia, estarem sempre no limite do desmanche da calma e do desarranjo das hierarquias – estados comuns à experiência de estar vivo.
Nas xilogravuras feitas por Gilvan Samico na década de 1960, gradualmente emergem os traços de sua obra madura. De saída, o artista articulou, de maneira original, o aprendido de seus mestres na década anterior: de Lívio Abramo, a exuberância quase feérica do traço; de Oswaldo Goeldi, o uso contido da cor e do espaço gravado. Munido de tais ferramentas, desde o início cuidou de preservar as cenas criadas de qualquer compromisso com o realismo do que estava sendo ali contado, mesclando o verossímil e o imaginado. Aos poucos, também foi firmando – nos títulos e nas imagens – um dualismo temático traduzido e reforçado em arranjos formalmente simétricos das situações inventadas. Por fim, pôs-se a segmentar as superfícies dos trabalhos em compartimentos estanques, onde cenas diversas simultaneamente se passavam.
Outro elemento presente, desde há muito, nos trabalhos do artista, são linhas paralelas e ondulantes gravadas, as quais possuem funções que vão além da composição da cena ou de ornamentação da imagem. A recorrente presença de um índice gráfico de fluidez nos trabalhos evoca a própria natureza imprecisa e movente da obra de Gilvan Samico. A despeito do compromisso irrestrito e ético com os procedimentos técnicos da xilogravura, pouco mais em seu ofício é contido em limites definidos. O mundo que o artista cria e grava não fica em lugar algum, ou é lugar somente de passagem e encontro. Assim como, analogamente, também não há inserção precisa no calendário daquilo que inventa, fazendo da atemporalidade das cenas justamente seu rastro ímpar.
A partir de 1975, Gilvan Samico passou a fazer, salvo poucas exceções, apenas uma nova imagem gravada por ano. Não havia nessa economia produtiva, entretanto, sinais de enfado com os achados feitos até então; tampouco era demonstração de modéstia ou recato. Era esse, somente, o tempo necessário para que tomasse forma, com o rigor e a clareza que a pressa por vezes embaça, o mundo de pensamentos que com hábeis gestos criou até o fim da vida. O tempo necessário para devorar as estrelas que queria.