Paulo Bruscky
Faz mais de cinco décadas que a obra de Paulo Bruscky se expande e se desdobra para vários cantos. Tendo início na prática do desenho, desde então ela inaugura, aprofunda, confronta ou se alia a algumas das mais relevantes invenções já feitas no impreciso e poroso campo da produção artística: do poema processo à arte correio, da arte xerox ao livro de artista, da fotografia à colagem, do vídeo à escultura, da performance à pintura, do carimbo à gravura e destes a criações de catalogação difícil. Deslize entre meios e procedimentos que sugere uma insatisfação com modos parciais de representação de um mundo assentado, em seu cotidiano ordinário, na mistura e no hibridismo. Obra extensa que, através da convocação e do enlace de imagens, formas, sons, escritos e gestos, quer sempre expandir as possibilidades de registro sensível da experiência de se estar atento à vida.
A exposição Alto-Retrato, nomeada a partir de trabalho antigo de Paulo Bruscky, apresenta um recorte largo dessa tão variada produção. Sem a ambição de ser cronologicamente precisa, a mostra percorre, contudo, todo o caminho feito até aqui pelo artista. Aproximando desenhos raramente exibidos, registros em fotografia e vídeo de algumas de suas mais celebradas intervenções públicas e uma profusão de trabalhos que desafiam categorizações rígidas, a mostra se organiza como constelação de inventos e fazeres, sempre escapando a redutoras totalizações críticas.
O que mais dá coesão ao que Paulo Bruscky produz é o vínculo forte entre cada trabalho feito e os modos como o artista situa a si mesmo no mundo. Observador agudo de tudo que o cerca – de objetos banais ao exercício autoritário de poder, do movimento desregulado das ruas a práticas científicas –, produz situações de confronto e desconcerto para quem se depara com seu inventário de anotações sobre os lugares e tempos que habita. A exposição é, nesse sentido, um autorretrato do artista. Mas é, também, um alto-retrato – expressão que, por causar estranheza na escrita, avisa de sua capacidade de desacomodar os sentidos. De inventar o que antes não existia.
Em 1969, o trabalho O Guerrilheiro recebeu o Primeiro Prêmio de Desenho do XXVIII Salão do Museu do Estado de Pernambuco, conforme consta na edição de 24 de setembro daquele ano do Diário Oficial do Estado. Por força do regulamento do evento, o desenho premiado de Paulo Bruscky deveria ter sido automaticamente integrado à coleção do museu. Pressionada por autoridades da ditadura militar – à época em seu período mais brutalmente repressivo – a direção do museu resolveu, em decisão arbitrária, substituir O Guerrilheiro por outro trabalho do artista, também exposto no Salão, chamado Supratecnologia. Em recente publicação sobre o acervo do Museu do Estado de Pernambuco, essa troca forçada está documentada, ainda que de modo não planejado. Ao lado da imagem do desenho de fato incorporado à coleção (Supratecnologia), estão impressos, por engano de catalogação, os dados do desenho na ocasião censurado (O Guerrilheiro). Esta é a primeira vez, em mais de cinco décadas, que os dois desenhos são novamente reunidos em uma exposição.
Ao longo de sua trajetória, Paulo Bruscky convocou meios e máquinas diversas para realizar seus desejados e, por vezes, inusitados intentos – câmeras fotográficas, copiadoras xerográficas, retroprojetores máquinas de fax, mimeógrafos, computadores, entre outros tantos –, do que há vários exemplos na exposição. Com o auxílio profissional adequado para manejar tomógrafos, certa vez desenhou, em papel, os impulsos nervosos emitidos por seu cérebro, traduzindo pensamentos diversos em riscos. Em Meu Cérebro Desenha Assim e em outros trabalhos pertencentes a esta “área médica” de sua obra, o artista se abre para o contágio entre disciplinas e para o imprevisto que resulta desses avizinhamentos.
A cidade – o Recife, em particular – sempre foi extensão do atelier de Paulo Bruscky. Sempre foi, também, espaço expositivo para seus trabalhos. No mais das vezes, sem quaisquer anúncios prévios ou explicações posteriores. Em uma ocasião, interferiu diretamente no fluxo urbano, como na ação Arte Pare, em que temporariamente bloqueou, com gesto frágil e poético, o fluxo de carros e pessoas em uma das principais pontes da cidade. Metáfora possível de interdições políticas da época. De outra vez, encenou, com agudeza e ironia, ritos que assinalam coletivamente a morte, simulando em detalhes o que se seguiria ao próprio falecimento: anúncios fúnebres e notas de pesar publicadas, velório, cortejo de seu caixão em carro funerário por ruas da cidade. Confronto a códigos sociais que confundiu a própria polícia, a qual, por intuir, talvez corretamente, que a alusão à morte individual era também referência à morte do espaço democrático e público, resolveu interditar a exposição depois de sua abertura. Arte Cemiterial, como nomeou o artista, que seria ainda desdobrada em outra ação, na qual lançou um caixão lacrado às águas do rio Capibaribe, na região próxima ao centro do Recife, desacomodando o olhar distraído de quem atravessa pontes sem aguardar surpresa alguma; instaurando, no meio da rua viva, a perturbadora lembrança de que a morte é coisa presente e garantida.
Por força de tantas e diversas incursões no universo do que é experimento, Paulo Bruscky travou contato com muitos outros que partilhavam, com ele, o desejo de mapear o lugar incerto que a arte gera e ocupa. Trocou correspondência, impressões, trabalhos e ideias com membros de coletivos artísticos de partes as mais distintas do mundo, fazendo, de seu atelier no Recife, ponto nodal da rede informal e densa que conecta e une criadores que não cabem em classificações comuns. Desse intercâmbio, que ganhou impulso na década de 1970 em função tanto do acanhamento das instituições de arte quanto das restrições impostas à produção e à circulação artísticas pelo regime ditatorial em curso, resultaram trabalhos agrupados sob a denominação de Arte Correio. Envelopes, cartões-postais, telegramas, telexes, selos, papeis de carta e mesmo e-mails, em ações recentes, servem de suporte para colagens, poesias visuais ou escritas, desenhos, propagandas e críticas políticas que atravessam o mundo, transformando o trânsito postal em efêmero espaço expositivo. No mesmo espírito de ocupação de circuitos comunicativos já existentes, Paulo Bruscky também tem se valido, há várias décadas, do espaço dos anúncios classificados dos jornais impressos para enunciar projetos e realizar trabalhos (ou para fazer do anúncio de projetos os próprios trabalhos), no mais das vezes sem alarde algum.
São muitos os trabalhos visuais de Paulo Bruscky atravessados e animados pela palavra. Assim como é usual que suas formulações escritas ganhem expressão artística quando transformadas em imagens. É essa característica de parte significativa de sua obra que norteia, de modo incisivo, os trabalhos, quase nunca expostos, em que se aproxima do movimento Poema-Processo. Movimento consolidado na década de 1960 e que deve, a grupos de artistas do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro, as suas mais importantes formulações conceituais. Como a distinção feita entre poesia (coisa abstrata) e poema (coisa concreta); ou a ideia de que os significados de um poema são moventes e muitos, requerendo a participação do outro para que se constituam, ainda de transitoriamente. Nos poemas-processo de Paulo Bruscky, palavras e imagens feitas de desenho, carimbo, colagem e muito mais coisas se roçam e se atravessam para sugerir sentidos que, de outro modo, não existiriam.